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Wellington Júnio Costa: a língua francesa entre palavra e imagem

Para a primeira entrevista deste ano, convidei o professor, pesquisador e tradutor Wellington Júnio Costa. O Wellington foi meu professor de francês na Alliance Française de Belo Horizonte e também durante a minha graduação em Letras na Faculdade de Letras (FALE) da UFMG. Atualmente, ele é doutorando do programa de pós-graduação em Letras Estrangeiras e Tradução (LETRA) da USP e professor efetivo de Língua Francesa e de Ensino de Língua Francesa do Departamento de Letras Estrangeiras da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Graduado em 1996 em Artes com habilitação em Cinema de Animação pela Escola de Belas Artes (EBA) da UFMG, formou-se também em licenciatura dupla Português-Francês pela FALE/UFMG em 2006. Mestre em Estudos Literários também pela FALE/UFMG, ele é tradutor da obra de Jean Cocteau para o português brasileiro e pesquisador das noções de autorretrato, autobiografia, autoficção, relação entre as artes, poética da tradução e tradução intersemiótica. Além desse currículo de peso, Wellington é uma das pessoas mais inspiradoras e gentis que tive a honra de conhecer. Ele é daqueles professores que motivam os alunos e que está sempre disponível para nos auxiliar, mesmo quando ele já não é mais nosso professor. Tanto que, depois de tantos anos que ele me deu aula, ainda mantemos contato e eu o considero meu eterno professor (inclusive o chamo de mon prof chéri). Nesse nosso bate-papo, vamos conversar um pouco sobre seu percurso acadêmico e profissional e de como a língua francesa se relaciona com a sua história. 

ASK: Para começar nossa entrevista, queria que você falasse um pouco de como foi para você a descoberta da língua francesa. Quando e como foi o seu primeiro contato?

WJC: Antes de ter “contato consciente” com a língua francesa, alguns aspectos da cultura francesa - abordados nas aulas de História sobre a Missão Artística Francesa no Brasil, o Iluminismo e a Revolução Francesa - haviam despertado a minha curiosidade e interesse. É claro que, mesmo tendo nascido e crescido em uma pequena cidade do interior de Minas, onde não havia oferta alguma de ensino de francês, eu pude ouvir alguns grandes sucessos musicais franceses como Aline, de Christophe, ou Voyage, Voyage, interpretado por Desireless. Porém, a fruição dessas canções não resultaram, naquele momento, em aprendizado linguístico sistematizado ou consciente. Somente quando eu já cursava Belas Artes pude inscrever-me, pela primeira vez, em um curso de francês, no CENEX da Faculdade de Letras da UFMG, eu tinha, então, 21 anos e um grande desejo de aprender a língua das vanguardas artísticas das primeiras décadas do século XX.

ASK: Quando você percebeu que queria ser professor de francês?

WJC: Quando estudei Belas Artes, optei pelo bacharelado, porque eu não pretendia ser professor. Mesmo assim, acabei me aproximando da atividade docente, como monitor de disciplinas do Departamento de Fotografia e Cinema e de oficinas em Festivais de Inverno da UFMG ou como ministrante de oficinas e minicursos de artes plásticas e cinema. Durante esse tempo, outro desejo não havia sido ainda contemplado: estudar Literatura, para colocar todas as minhas paixões em relação (artes visuais, cinema e literatura). Então, cinco anos depois de formado, fiz novo vestibular e voltei à UFMG para estudar Letras. A escolha pela licenciatura dupla Português-Francês se colocou como a mais lógica, mas não necessariamente para tornar-me professor de francês, cujo campo de trabalho, na época, parecia bastante restrito, em BH. Nos cinco anos de intervalo entre um curso e outro, tive raríssimas oportunidades de praticar o francês, no entanto, a memória do aprendizado da língua em nível básico no CENEX, me permitiu um desempenho inicial que fez com que a professora Beatriz Vaz Leão acreditasse no meu potencial. Fui selecionado, treinado e supervisionado por ela, como estagiário do CENEX. Alí, tive a certeza de ter feito a escolha certa. 

ASK: Também estudei no Centro de Extensão da FALE (CENEX/FALE) e guardo ótimas lembranças dos meus professores e da professora Beatriz Vaz Leão, que também me deu aula na graduação. No Brasil, antes de se tornar professor da UFS, você foi professor de francês do CENEX, do Centro Acadêmico de Ciências Sociais (CACS/FAFICH) e coordenador da Alliance Française de Belo Horizonte. Você também foi professor-assistente de língua portuguesa na França. Quais as principais semelhanças e diferenças em ensinar francês no Brasil e português na França? Como você avalia essas suas experiências profissionais?

WJC: Eu participei do programa de assistente de língua do Governo Francês, quando ainda cursava a graduação e já estagiava no CENEX. Na França, trabalhei em uma escola de ensino médio (lycée) e em outra de ensino fundamental 2 (collège). Como assistente, eu auxiliava o professor de português das turmas e, algumas vezes, assumi as aulas sozinho. Eu estava lá, para complementar o programa da disciplina com “a cultura brasileira” e “o português brasileiro”. No Brasil, com exceção do projeto especial de estágio obrigatório (não havia oferta regular de francês nas escolas de BH), eu nunca lecionei no ensino regular fundamental e médio. Atuei em cursos livres de idioma e na universidade, em cursos de formação de professores de FLE. Dessa forma, seria difícil comparar as duas experiências, na França e no Brasil. De todo modo, pude perceber uma maior valorização do ensino de línguas estrangeiras nas escolas de lá. No “lycée” onde trabalhei, eu tive mais de 50 alunos distribuídos em 5 turmas. Havia 8 opções de língua além da língua materna: grego clássico, latim, inglês, espanhol, italiano, alemão, português e provençal. Outra diferença que percebi foi a relação professor-aluno, muito mais formal e rígida na França do que no Brasil. A minha vivência na França contribuiu muitíssimo para a minha formação como professor de FLE, pois fortaleceu a minha relação com a cultura francesa. 

ASK: Nos conhecemos há mais de dez anos. Você foi meu professor na FALE em 2012 e na Alliance Française em 2010/2011. Antes disso, eu já havia participado de alguns ateliês que você organizou na FALE e no CACS e participamos de vários outros eventos acadêmicos juntos. O que sempre me surpreendeu é que você sempre foi muito acessível, muito aberto a conversar com os alunos e nunca estabeleceu aquela hierarquia que distancia professor e aluno, como é comum na vida acadêmica. Agora que também sou prof de FLE, fico me perguntando: como você vê sua relação com seus alunos, os antigos e os atuais?

WJC: O que mais me agrada, na nossa profissão, é o compartilhamento constante de experiências e a construção coletiva do conhecimento. Eu aprendo muito sobre a matéria de ensino com os meus alunos, que das suas vivências diversas trazem questões que eu não havia previsto, aprendo também sobre as relações humanas e sobre mim mesmo. Logo, me parece incoerente querer estabelecer uma relação vertical em sala de aula ou mesmo fora dela. Vejo meus alunos e ex-alunos como pessoas que trilham caminhos no mesmo campo que eu. Nós nos encontraremos e nos reencontraremos muitas vezes ao longo das nossas caminhadas, em cada uma dessas vezes, participaremos, reciprocamente, da história do outro. Compreendo o afeto e o respeito que você demonstra ter por mim como uma prova de que eu não estou errado. 

ASK: O que me chama bastante atenção no seu percurso profissional é a forma como você conseguiu unir suas duas formações, em Artes e em Letras, na suas pesquisas. Como você se encontrou entre as duas áreas? Em algum momento, você se viu diante de um dilema? De ter de escolher entre elas?

WJC: Eu entendo a literatura como uma expressão artística, assim como as artes plásticas ou o cinema (para citar apenas as artes em que me formei). Dito isso, não posso deixar de considerar que, pelo menos desde as vanguardas do início do século XX, a fluidez das fronteiras se tornou evidente. Junte-se a isso a minha felicidade por ter escolhido o objeto de estudo perfeito para o meu desenvolvimento acadêmico: a obra de Jean Cocteau, desenhista, poeta e cineasta...

ASK: Além de tradutor da obra de Jean Cocteau, você é também pesquisador de poética e tradução. Quando e como surgiu o seu interesse pela tradução literária?

WJC: Na minha pesquisa de mestrado, eu analisei, sob a ótica da autobiografia, do autorretrato e da autoficção, uma série de desenhos, um filme e um livro de Jean Cocteau. Esse livro de 1947, A dificuldade de ser, nunca havia sido traduzido para o português. Então, tive de traduzir todas as passagens que dele citei em minha dissertação. Daí veio a ideia de propor sua tradução completa à editora Autêntica. Apresentei-lhe um projeto que incluía um extrato do texto traduzido e justificativas que respondiam às seguintes questões: Por que traduzir Jean Cocteau? Por que traduzir A dificuldade de ser? Por que eu como tradutor? Até aquele momento, eu havia tido experiências com tradução e versão escrita técnica e acadêmica, tradução simultânea e consecutiva em diversas áreas, mas a minha experiência com tradução literária se limitava à tradução de um conto de Sylvie Debs, publicado em uma coletânea, em 2008. Com o tempo, pude perceber que tradução simultânea não me proporcionava prazer, tradução consecutiva em determinadas áreas também não e mesmo a tradução escrita técnica não era o que mais me agradava. A Arte é o que me comove, por isso, decidi restringir, progressivamente, a minha atuação como tradutor à tradução literária ou àquela de textos que se situam no campo das artes.

ASK: Como a teoria e a prática se relacionam no seu traduzir?

WJC: Embora eu tivesse feito uma disciplina de tradução na graduação e uma formação em tradução pela Associação dos Professores de Francês de Minas Gerais, a tradução do conto de Sylvie Debs e de A dificuldade de ser se deu quase de forma intuitiva. Esses dois processos, no entanto, me forneceram muito material para reflexão, o que levei a alguns encontros acadêmicos. O Potomak, por outro lado, foi um trabalho muito mais exigente, por conter diversos gêneros textuais como constituintes de uma narrativa romanesca, mas também porque, depois das experiências anteriores, a minha prática já não podia mais prescindir de uma reflexão mais sistematizada. 

ASK: Você é mestre em Teoria da Literatura e Literatura Comparada. Existe relação, para você, entre pesquisa em literatura francesa e ensino do francês?

WJC: Na Universidade Federal de Sergipe, eu ministro disciplinas de língua francesa, didática de FLE e culturas francófonas. Esta última me permite estabelecer relações mais diretas e explícitas com os estudos da literatura, do cinema e de outras artes. De todo modo, não concebo o ensino da língua desvinculado da cultura, logo, minhas pesquisas em literatura francesa permeiam as minhas aulas de língua. Aliás, se no ensino eu atuo na área de língua e ensino de língua, meus trabalhos de extensão e pesquisa, por outro lado, são sempre voltados para a literatura, a literatura comparada, o cinema e a literatura e outras artes. Dessa forma, dou a oportunidade aos meus alunos de acompanharem o meu movimento.

ASK: Como é para você a relação entre palavra e imagem na tradução da obra de Jean Cocteau?

WJC: Desde o início, a relação entre palavra e imagem foi determinante na minha escolha por Jean Cocteau. Em A dificuldade de ser, as imagens evocadas pelo texto são extremamente potentes e há exemplos claros de écfrase (“descrição de obra de arte declarada como tal”, segundo Liliane Louvel: 2012). Durante o trabalho de tradução desse livro, eu tive de buscar cada imagem à qual Cocteau se referia: um desenho, uma pintura, quadro, uma escultura, uma sequência de filme, um balé... Já em O Potomak, além dos efeitos imagéticos produzidos pelo texto, um álbum de desenhos faz parte da narrativa, ou seja, há uma obra completa dentro de outra, um álbum de desenhos criado pelo personagem narrador, que também descreve o processo de criação desse álbum, que contém legendas e é comentado por outros personagens. 

ASK: Gostaria de saber como os dois trabalhos que você realiza com a língua francesa, o de ensino e o de tradução, se relacionam. Você identifica aproximações e distanciamentos entre eles?

WJC: Todo trabalho de tradução implica em um aprendizado, em um aprofundamento da compreensão das duas línguas e da relação entre elas. Inevitavelmente, esse aprendizado irá emergir nas aulas de língua. Como atividade de extensão, eu já ministrei oficinas em que praticamos exercícios de tradução. Excetuando esses aspectos, um projeto de tradução pode ser longo, solitário e pode exigir uma concentração que, no momento de sua realização, nos afasta da preocupação com o ensino. 

ASK: Para encerrar, explorando ainda a relação entre palavra e imagem em sua trajetória, quais obras você recomenda?

WJC: Recomendo Jean Cocteau, sempre: ao público brasileiro que não compreende a língua francesa, recomendo o livro O Potomak (Editora Autêntica, 2019) e os filmes O sangue de um poeta (1930) e O testamento de Orfeu (1960); a quem compreende a língua francesa, recomendo também os livros Le mystère de Jean l’oiseleur (Éditions des Saints Pères, 2016) e La voix humaine (Éditions des Saints Pères, 2017).

Wellington Júnio Costa traduziu as obras O Potomak e A dificuldade de ser, de Jean Cocteau, ambas publicadas pela Autêntica Editora. 






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