Muito se fala sobre o que é ou não literatura. Quando entrei na minha graduação, no início de 2008, o assunto já causava alvoroço no curso de letras e, provavelmente, teve início bem antes de eu iniciar meus estudos superiores. De lá para cá, nada mudou, pelo visto.
O grande ponto de conflito do que vem a ser literatura está no fato de autores e professores universitários entenderem como literatura unicamente o canônico, a literatura dita clássica, como Hugo, Balzac, Voltaire, Machado de Assis, Guimarães Rosa, etc., incluindo (talvez?) os ganhadores de prêmios como o Jabuti.
Fato é que a literatura clássica exclui grande parte das produções literárias que existem, inclusive a literatura infantil como um todo. Raros autores entram na lista dos cânones e, provavelmente, são incluídos por terem conseguido agradar aos professores universitários e aos poucos autores dessa excludente seleção.
Peter Hunt, em Crítica, teoria e literatura infantil (2010), evidencia e discute acerca desse ponto de conflito. Para mim, essa obra serve de texto-base não só para meus artigos sobre literatura infantil, como o que escrevi em meu trabalho final na pós-graduação, como também para a visão que tenho sobre essa literatura.
Em linhas gerais, Hunt aponta uma hierarquia estabelecida pelos professores universitários de literatura. Para estes, o cânone vem no topo. Abaixo, a literatura feminista e, por último, a literatura infantil. Só o fato de se dizer literatura infantil já é um indício de que essa hierarquia de fato existe. Não dizemos literatura adulta ou literatura da terceira idade. Mas dizemos literatura infantil, literatura juvenil, literatura feminista.
O que Hunt propõe em seu livro é que a literatura para crianças não seja analisada com os mesmos parâmetros da literatura canônica. São essas formas de análise que criam margens, que discriminam e que excluem tudo aquilo que não encaixa perfeitamente no dito cânone.
Só a palavra cânone já carrega em sua pronúncia um emaranhado de poeira e teias de aranha. Consigo até mesmo sentir o cheiro de biblioteca trancafiada a sete chaves por mais de séculos sem que um ser humano tenha pisado lá. É fascinante um lugar assim? Com toda certeza. Eu adoro! Mas não dá para considerar só as produções do passado como relevantes e um ou outro ganhador de prêmio literário. E olha que, para mim, dizer isso não é fácil. Passei praticamente toda a minha graduação lendo os clássicos, porque sou simplesmente apaixonada por eles. Ainda hoje, eu simplesmente adoro lê-los e sentir aquela sensação gostosa de me deslocar no tempo e no espaço para vivenciar outras realidades tão diferentes da minha. Mas, ainda bem, eu percebi que toda literatura tem sua beleza e seu mérito. As produções contemporâneas não me deslocam no tempo, às vezes só no espaço, e me dão algo que não tem preço: o ponto de vista do outro. Isso é fascinante!
O estabelecimento do canônico teve, sim, sua importância. Nos fez ver enquanto humanidade que existem textos essenciais para a nossa constituição. Infelizmente, o erro está em insistir em apenas considerar a esses textos.
Talvez o vislumbre que anos de carreira e de reconhecimento tenham feito de alguns autores de literatura de margem, que pelo cânone não é nem considerado literatura, grandes carrascos de textos que fogem, segundo a concepção pessoal deles, do que é literatura. Pobremente eles se enganam e se perdem em si mesmos, ao não perceberem que a visão limitada de literatura que possuem exclui inclusive a eles mesmos, da mesma forma que eles aos outros exclui.
Parabenizo imensamente à vida e obra de Ruth Rocha, apesar da infelicidade de suas palavras acerca da literatura de J. K. Rowling*. Desejo a ela que não caia na mesma armadilha de palavras na qual jogou a grande autora de Harry Potter que, por sinal, passa muito bem e nada sentiu.
Faço da definição do grande lexicógrafo brasileiro, Aurélio Buarque de Holanda, minhas palavras finais, esperando que dele ninguém duvide. Prometo escrever mais sobre literatura para crianças em breve.
"Significado de Literatura
1 Ciência do literato.
2 Conjunto das obras literárias de um país ou de uma época.
3 Escritos narrativos, históricos, críticos, de eloquência, de fantasia, de poesia, etc.
4 Folheto que acompanha um medicamento ou alguns outros produto, de conteúdo informativo sobre composição, administração, precauções, etc.
5 literatura de cordel: conjunto de folhetos literários populares, que os livreiros originalmente dependuravam em cordéis."
*Veja aqui a declaração polêmica de Ruth Rocha em entrevista ao portal IG, publicada dia 27/04/2015.