Existem pessoas que são realmente muito boas no que fazem. De tão boas, essas pessoas se tornam referência nas áreas em que atuam. Para mim, a Amanda Pavani é uma delas. Eu não consigo pensar em tradução do inglês sem pensar nela.
Confira a seguir a entrevista que ela concedeu aqui para o Momento Revisão e as dicas que ela dá aos tradutores iniciantes:
Amanda, vejo muitos tradutores, principalmente de inglês,
que não possuem formação específica em tradução. No que você acha que a sua
formação nessa área contribui para o exercício dessa atividade?
Por causa da maneira
como o inglês é presente no nosso dia a dia, surge muita gente com experiência
prática na linguagem. Na graduação, a abordagem que eu estudei da tradução era
mais linguística, particularmente sobre as diferenças de comportamento de um tradutor
experiente para um tradutor novato. No treinamento teórico, a gente aprende a
enxergar coisas que um leigo talvez não enxergue, ou enxergue intuitivamente,
sem sistematizar as diferenças entre línguas. Por exemplo, um treinamento
formal deixa bem claro na cabeça do tradutor a diferença causada ao deslocar
fragmentos, sentenças, quebrar orações, explicitar, quando usar notas de
rodapé. Outra coisa também é o “aprender a procurar”. Trabalhar com texto,
tanto na tradução quanto na revisão, tem muito pouco a ver com saber coisas de
cor, e muito com saber onde procurar. Na faculdade a gente conhece boas databases, e até descobre a utilidade de
fazer uma busca em corpus pra
conferir a ocorrência de determinado termo ou colocação, enquanto a maioria só
joga no google e torce praquilo realmente refletir o uso da língua no
cotidiano. Conforme a gente faz buscas várias vezes, acaba decorando muita
coisa – a tal da expertise que
pesquisam tanto na FALE –, e acaba dando essa impressão de que profissional da
língua é uma gramática/dicionário ambulante.
Além de tradutora, você também é revisora bilíngue. Como é o
seu olhar sobre um texto que será traduzido? Você tem alguma metodologia de
trabalho?
Na fase de
pré-tradução, minha preparação é mais prática do que teórica. Primeiro eu
distribuo a quantidade de trabalho pelos dias do prazo. Antes ainda disso, na
fase de orçamento com o cliente, vou considerar a dificuldade da tarefa e se eu
vou precisar dedicar muito tempo de consulta, como quando eu recebo documentos médicos
sobre testosterona injetável e seus terríveis possíveis efeitos colaterais (true story). Geralmente não leio o texto
antes, muito embora isso seja o ideal. Na prática diária de tradução, isso é
pouco factível. Contudo, eu releio tudo no final, depois que tudo está feito,
pra uniformizar terminologia (se eu usei consumption
60% das vezes e consumerism o resto,
por exemplo, vou ter que sair vendo se realmente essas instâncias eram
diferentes ou se eu me distraí, o que acontece mais do que a gente gostaria).
Quase nenhum tradutor vai te falar isso; por ser um meio bem difícil de entrar
e caótico pra se manter, poucos admitem falhas, dificuldades ou distrações.
Para você, qual a importância da revisão em uma tradução?
Depende. Você tá
falando da revisão de tradução, feita
por outro profissional, ou a minha própria revisão, antes de entregar o meu
trabalho individual? Sendo a primeira, é preciso cuidado, porque nem todas as
traduções precisam ter todas as decisões refeitas e discutidas; eu indicaria
apenas pra livros problemáticos, teóricos, etc. No caso da minha revisão
individual é vital, por dois motivos: pela uniformização dos termos, como eu
falei acima, e para o teste de “soar natural”, ou seja, ler o texto traduzido
esquecendo-se dos detalhes do texto fonte, e sim examinando se a tradução que
você produziu funciona sozinha, se pode ser lida naturalmente e não daquele
jeito truncado da moça do google translate,
por exemplo. Inclusive, eu até reli todas as respostas aqui antes de te enviar.
E justifiquei, uniformizei fonte, mas isso já são pequenos TOCs que eu
desenvolvi.
Atualmente, você trabalha como tradutora e revisora
freelancer. Como você avalia o mercado para profissionais autônomos?
A minha atuação
principal agora é o mestrado, porque recebo bolsa, mas não costumo negar quando
aparecem frilas. Pra alguém que quer se sustentar com isso, o ambiente é meio
selvagem, principalmente porque você acaba tendo que aprender coisas que um
tradutor ou revisor dentro de empresa não precisa: como pagar impostos,
declarar renda, administrar o fluxo de serviço... Porque pode acontecer de um
mês você ficar maluco, ganhar um mundo de dinheiro, mas no mês seguinte você ganha
400 reais porque tudo está mais devagar. Ao mesmo tempo, é necessário ficar
sempre fazendo testes pra empresas novas, criar um registro MEI pra não perder
clientes que precisam de nota fiscal... Não me entenda mal; é mais satisfatório
do que trabalhar em escritório. Nada vence o prazer de traduzir de pijama com
um café e uma musiquinha no seu quarto.
Como você avalia a atuação profissional tanto do tradutor
como do revisor no meio editorial? Quais são os prós e os contras de ser
contratado e autônomo?
Sem querer eu falei
isso na pergunta anterior, hahaha. Mas ser contratado tem suas alegrias, como
benefícios, férias... Quando você é autônomo você até viaja, mas tem uma parte
sua pensando nos trabalhos que você não está pegando. Quando se é contratado,
você pode delegar essa preocupação aos outros e comer pipoca vendo netflix sem
culpa. No meio editorial, em qualquer das duas esferas, esse profissional é mal
pago e pouco reconhecido. Existe uma ilusão de que saber se comunicar e
escrever e-mails já te qualifica pra passar pente fino em textos. Isso não
acontece só com profissionais do texto; quem trabalha nos departamentos de arte
das editoras também costuma sofrer do mesmo mal.
Antes de entrar na Editora
Bernoulli, você já trabalhava com tradução e revisão. No que você acha que
contribuiu a experiência profissional na editora para a sua atuação hoje?
Antes do Bernoulli eu
não fazia revisão, apenas tradução. Lá, a Aiko, chefe do núcleo de Linguagens,
me treinou, como treina sempre que recebem alguém sem experiência, porém
disposto. A experiência foi intensa em termos de aprendizado: eu conheci profissionais,
conheci pessoas de empresas relacionadas, aprendi sobre o fluxo editorial, as
etapas da produção e o próprio modus
operandi da revisão – a linha fina entre “como eu acho que fica bonito”, e
a mudança necessária, de padronização ou correção.
Durante muito tempo você deu aulas de inglês. Na sua
opinião, atuar como professora de língua estrangeira ajuda de alguma forma nos
ofícios de revisão e de tradução?
Me ajudou
principalmente na maneira de me articular interpessoalmente. Explico: antes eu
era bicho do mato. Mesmo quando sabia alguma coisa, não sabia explicar por que
eu sabia, ou como isso se passava. Não sabia me impor como profissional ou
explicar minhas ideias em uma reunião. Dar aula te força a sistematizar todas
essas coisas, a incluir os outros na sua linha de raciocínio, e a ter uma
postura que os outros são obrigados a respeitar e ouvir. Isso é particularmente
bom ao negociar com clientes ou chefes.
E a experiência no exterior? Você acha que contribui?
Contribuiu mais pra minha habilidade de dar aula,
pra dizer a verdade. Na confiança de que o inglês que você fala passou pelo
teste do contexto real, estudando, trabalhando, pedindo informação de ônibus,
etc.
Por inglês não ser sua língua materna, para você tem diferença revisar em português ou em inglês?
Eu me
sinto mais confortável revisando em inglês, porque o meu conhecimento dessa
língua é mais sistematizado que o do português. Na faculdade eu fiz sintaxe,
expressão oral, fonologia, ensino, oficina de tradução, tudo focado no inglês,
enquanto meu treinamento em português foi mais prático e eu costumo consultar
muito mais quando uso português, principalmente português acadêmico.
Para você, o mestrado contribui, de alguma forma, para a sua
atuação profissional?
Até agora, tem sido uma
questão mais de carteirada, haha. Como o meu mestrado é em literatura escrita
em inglês, acaba tendo pouca relação com revisão e tradução; mas as pessoas só
ouvem duas palavras: “mestrado” e “inglês”. Tá que isso não é sem mérito,
porque o meu mestrado é integralmente em língua inglesa (tudo que se escreve,
fala e lê no currículo), sem falar do treinamento em escrita acadêmica e MLA –
antes eu sabia só ABNT, e agora pra revisões em inglês eu posso perguntar
também se a pessoa quer padronização estilo MLA.
O que você recomenda para revisores e tradutores iniciantes?
Na faculdade, procurar
uma iniciação científica. No começo, o trabalho braçal vai ser insuportável,
mas depois tudo começa a entrar nos eixos, sem falar da experiência com os
professores e outros teóricos que visitam a universidade. Profissionalmente, é
bobo, mas ajuda: procurar empresas de tradução no google que ofereçam tradução
de texto teste, enviar o máximo possível. Anúncios em redes sociais na minha
experiência não são muito eficazes e poluem o site, de modo que a pessoa pega
raiva ao invés de lembrar de você em um momento de necessidade. Baixar um
software de memória de tradução e ficar mexendo nele nas horas vagas também é
ótimo, pois saber usar algo como o Omega T pode te economizar muito tempo em
traduções longas e/ou repetitivas. Ah, sim: não existe trabalho ridículo demais
quando você é iniciante. Uma das minhas primeiras traduções foi um ebook sobre celulite, que discorria
sobre sucos, e a importância vital dos tratamentos de cura de celulite... Pra
concluir que não há cura e tudo que se faz é paliativo. Mas pagou e eu peguei a
experiência.